- Escrito por Lilian Russo
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A teoria do pica-pau Destaque
Um artigo publicado na revista BMJ sustenta que o Q-Collar, um dispositivo usado no pescoço que promete proteger esportistas de lesões cerebrais, não tem benefício clínico comprovado e se baseia em “ciência duvidosa”. Os autores do artigo, o fisiologista James Smoliga, do Departamento de Ciências da Reabilitação da Universidade Tufts, e a neurobiologista Mu Yang, da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, conclamaram Food and Drug Administration, a FDA, órgão que regula o comércio de alimentos, medicamentos e dispositivos médicos no país, a reavaliar a autorização do uso do equipamento concedida em 2021.
O Q-Collar é uma espécie de coleira de silicone semirrígido que se tornou popular entre atletas dos Estados Unidos que praticam esportes de contato, como futebol americano e lacrosse. Perto de 50 mil unidades já foram vendidas, a US$ 199 cada (pouco mais de R$ 1 mil). Ele aplica pressão na veia jugular e se baseia na hipótese de que isso pode proteger o cérebro dos efeitos de um impacto. Seu inventor, o clínico-geral David Smith, diz ter se inspirado na fisiologia dos pica-paus que, segundo afirma, tem um mecanismo de compressão da veia jugular que protege o cérebro de danos causados pelas bicadas repetitivas. Alega que o Q-Collar, ao apertar a jugular dos atletas, preenche o crânio com mais sangue e promove um encaixe mais firme do cérebro na caixa craniana, reduzindo seu movimento quando há um choque. O suposto efeito atraiu investidores. A fabricante, a empresa Q30, atraiu US$ 4 milhões em capital de risco antes de lançar o produto no mercado.
“O mecanismo aparentemente simples e a sofisticada campanha de marketing do Q-Collar alimentaram manchetes do tipo ‘Como os pica-paus salvarão o futebol americano”’, escreveram os autores do artigo. Eles advertem, contudo, que a teoria do pica-pau nunca foi sequer testada: os artigos de Smith de 2012 usaram roedores como modelo, não pássaros, e apenas especularam sobre o efeito da compressão da jugular nos pica-paus, embora os estudos sejam citados como evidência da eficiência do dispositivo. Smith costuma responder à crítica com o argumento de que não poderia fazer testes diretamente com pica-paus, porque se trata de uma espécie ameaçada.
Os dois autores também demonstraram que as alegações de que o produto poderia prevenir concussões, um tipo de lesão cerebral grave causada por impacto, foi desmentido por lesões observadas em atletas que usavam o dispositivo e isso levou a Q30 a ajustar a propaganda do produto, passando a se referir a um suposto efeito protetor contra impactos leves, mas repetitivos, como um “cinto de segurança” para o cérebro. “Estamos agora em uma situação em que um dispositivo que restringe o fluxo sanguíneo e é usado ao redor do pescoço, sem nenhum benefício clínico comprovado, está sendo vendido a populações vulneráveis – incluindo crianças de apenas 13 anos. É hora de a FDA rever sua decisão”, afirmaram Smoliga e Yang.
Segundo o jornal The Washington Post, que abordou a controvérsia em torno do Q-Collar em reportagem publicada em outubro, analistas da FDA duvidaram do efeito protetor do Q-Collar e o órgão só concordou em aprová-lo para atletas depois que a Q30 juntou ao manual do dispositivo uma declaração afirmando que ele não previne concussões e que quaisquer alegações de proteção contra problemas cognitivos de longo prazo “não foram comprovadas”. Essa declaração, no entanto, não consta em materiais promocionais do equipamento. Em nota enviada ao BMJ, a Q30 afirmou que Smith “se inspirou ao refletir sobre os pica-paus” e declarou que “não alega que o Q-Collar imita a fisiologia do pica-pau, não usou o pica-pau para o desenvolvimento de seu produto e não usa um pica-pau em seu marketing”.
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